quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Feliz ano novo!

2008/2009 em um país cujo ano novo oficial é em março, quase abril, não podia ser normal! Tivemos 3 comemorações. A primeira, no Rum Doodle (foto), barzinho no Thamel que é o xodó dos escaleiros de montanha, que deixam recadinhos nuns pézões de papel, que ficam pendurados no teto do bar, espalhados pelas paredes, uma graça. O Doodle concede refeições de graça pra vida toda, desde que você tenha conquistado o Everest!! Pertinho da meia noite, resolvemos descer pra ver a festinha do hotel. Entramos, meio com sono, meio com medo da roubada, só pra contar o dez, nove, oito e ir dormir com a consciência tranquila. Atravessando o cassino (!!!), descendo para a "pista", achamos meio estranho o clima de fim de festa, a homarada se abraçando, estourando as bexigas, jogando goró pro alto, subindo no palco. Fiquei pensando com os meus botões que no Brasil é mais organizado: primeiro vira o ano, depois quebra tudo, afinal, temos um ano inteirinho pela frente pra pagar o preju. Esperando ansiosamente a contagem regressiva, 11h56, vem o quinto garçom nos abraçar e desejar feliz ano novo. Feliz ano novo, amigo, mas me desculpa perguntar, que horas são?? 12h15, sir. Ué, mas o Nepal não é o mesmo fuso da Índia? Não, sir, é 15 minutos a mais. Com essas e mais aquelas, vimos 2009 começar pagando a entrada pra festa estranha com gente esquisita, e pra comemorar, estouramos umas bexiguinhas e simbora dormir. Pra não passar em branco, já que emoção pouca é bobagem, ainda tivemos a caruda de meditar uns minutinhos no templinho do hotel, junto com a galera zen que não tava nem aí pra festa dos gringos. Ah, gente, vale tudo, vai!

Alguém já ouviu falar de fuso horário com 15 minutos a mais? Viva o Nepal!

Lojinha de chá


Pantone Nepali




Mais da Durbar Sq







Katmandu - Nepal!

Durbar Square - patrimônio da Unesco. Maior concentração de templos hindus, stupas budistas, hipongos atrasados, gringos escaladores de himalaia, monges, nepalis, rikshaws de bicicleta, tranqueiras maravilhosas e baratas, temperinhos, chás, incensos, imagens do buda, pashiminas e outras maluquices. Bagunça e delícia. Nepal rules!









domingo, 28 de dezembro de 2008

Ressaca moral e outras considerações

Acontece que chega uma hora que você começa a se sentir ridículo e com vergonha de ter atravessado meio mundo para vir até aqui. Pra ver o quê? Que eles vivem na merda? Na total e completa miséria? Que são uns pobres coitados esquecidos nesse fim de mundo, sem água, sem luz, sem comida, zanzando pelo meio da sujeira, inventando uns truquinhos pra sobreviver? Pra ver uns palácios meio repetidos? Pra ver o Taj Mahal, que o desgraçado do imperador construiu de mármore puro, às custas do trabalho escravo de 20 mil pessoas, pra enterrar a esposa, ao invés de construir qualquer porcaria que fosse pra melhorar a vida do povo?

Aí a gente tem coragem de ficar bravo quando eles fazem um teatrinho pra arrancar uma rúpias, botam umas crianças lindinhas (e são lindinhas de verdade) pra amolecer o coração dos gringos e ver se a gente acredita que aquele cara de pijama é um ser espiritualmente elevado que cuida do templo com a família, olha que nobre e que sagrado, e aí você deixa uma rupinhas e vai embora com o rabo no meio das pernas se sentido um ser humano um pouco menos horroroso.

Mas na mesa do restaurante dos gringos, chorei igual criança, de vergonha de estar aqui, turistando no meio da pobreza, como se essa desgraça toda de alguma maneira fosse atração pra ser vista, só falta um cara cobrando ingresso na chegada do aeroporto internacional: compre aqui sua entrada pro freak show da miséria e do abandono, é tudo bem em conta, e qualquer gorjeta é ridícula de tão barata, caso se interesse em convertê-la pra moeda corrente em seu país, mesmo que esse país também seja um país pobre como o Brasil.

Aí o Lonely Planet fala que Jaipur é o paraíso das compras, e dá vontade de chorar vendo as lojinhas pobres, as barraquinhas, as coisinhas baratinhas, as mercadorias lindas às vezes, mas sujinhas e mequetrefes na maior parte do tempo, e a gringaiada vem aqui feliz da vida, barganhando com a miséria, achando engraçado o improviso, o desespero pela sobrevivência, a absoluta falta de recurso desses pobres diabos que só faltam deitar no chão pra você passar e não sujar o pé na lixo espalhado aos montes pela rua.

A vontade que dá é ir lá e pedir desculpa pra eles. Olha, gente, desculpa, não devia estar aqui, fazendo turismo em cima do desespero de vocês, tirando foto de dentro do taxi, escovando o dente com água mineral de medo de pegar um piriri, se eu pudesse ajudar, ajudaria, se algo adiantasse, eu faria, mas não tem, então obrigada por tudo, desculpa qualquer coisa, e espero que na próxima vida vocês venham numa circunstância melhor, ou que essa vida aqui tenha bastado, e que vocês não precisem mais pagar pedágio nenhum nesse mundo.

Momento surto também pode. Faz parte da Índia.

Templo do Sol - o Templo dos Macacos

Fim de tarde, o passeio é subir um morrinho representativo, no topo do qual está o pequenino Templo do Deus Sol, popularmente conhecido como Templo dos Macacos.O lugar faz juz ao nome, porque ao longo da estradinha íngrime pra chegar no esquema, incontáveis macacos vêm dar uma banda, antes de voltar pro mato e tirar a merecida soneca dos justos. Eles ficam por ali, aceitam comida, dão uma brigadinha uns com os outros, ficam olhando a paisagem, pensando na vida. Não mexeram comigo, mas deram umas belas olhadas. Assim tudo bem. Já em cima, a vista de Jaipur é incrível, sob o pôr-do-sol ainda mais. O lugar é um templinho, umas figuras hindus, umas flores, um guru estranho, umas crianças da família que toma conta do barato. Fiz amiguinhas por lá.

Ambar Fort

O Ambar Fort é a uma das coisas mais lindas que vimos na Índia. Fica no alto de uma montanha, e é daqueles lugares que você fecha o olho e, por um segundo, imagina que uma cena das Mil e uma Noites poderia perfeitamente ter acontecido ali. Claro, abstraia, de alguma maneira, da sua mente, os trocentos milhões de turistas (na sua enorme e gigantesca maioria indianos mesmo), a muvuca, a gritaria da criançada, os “guias oficiais”, o abandono, o descuido. Faz parte da Índia

O lugar é fantástico, mágico, maravilhoso. Vale cada degrau da subidinha sofrida e paga o ingresso. Vi até um cara tocando aquela flautinha e encantando uma cobra naja. Ele tocava a flauta e ela paradinha, com a asinha aberta, olhando pra carinha dele. Juro por deus, shiva, shakti, garuda, vishnu e quem mais você quiser!

Se um dia um tijolo cair na sua cabeça e você decidir ir à Índia, dê um jeito de passar em Jaipur, procure o Shariff da Royal Jaipur Tourism (motorista de taxi uber gente boa), e visite essa belezinha.











Think Pink

Estamos em Jaipur, depois de uma viagem de 5h de carro pelo interior de Índia. Até agora não sei se as cenas que vi eram reais ou se misturavam com a soneca impossível de resistir com o chacoalha do carro, mesmo com o buzinaço initerrupto de carros, caminhões, motos, rikshaws, tratores, ônibus. Tudo caindo aos pedaços, como tudo aqui, menos os carros dos turistas.

Jaipur é muito mais agradável que Agra, mais rica (não imagine Beverly Hills, ela só é mais rica que Agra), mais organizada, arborizada, mais asfaltada. A cidade foi construída por um dos generais do Akbar (um dos imperadores legais da época do império Mughal, depois conto dele), Maharaja Jai Sing II. Esse cara vivia num forte, perto de Jaipur (Amber), e decidiu que já era mais do que hora de sair da toca e respirar ares mais urbanos. Assim, ele mandou abrir uma estrada ligando Amber a Jaipur, literalmente abrindo uma fenda na montanha, e construiu a cidade baseado nos princípios do Shilpa-Shastra, um tratado de arquitetura hindu antiga. Nasce assim, nos cafundós da Índia, em 1727, uma cidade planejada, bem desenhada, com quarteirões definidos e separados por uso, avenidas amplas, traçado ortogonal, um primor. Pasmem.

Em 1876, o outro marajá que tomava conta do pedaço, se preparando para receber a visita do Príncipe de Gales, mandou pintar a Old City todinha de rosa, cor associada à hospitalidade. O hábito pegou, e até hoje todas (absolutamente todas) as fachadas dessa parte da cidade são pintadas e repintadas da mesma cor. O apelido confere, Jaipur é realmente a Pink City. Ui!


sábado, 27 de dezembro de 2008

Fila Indiana

Sabe a fila indiana? Pois é, ela não se chama assim à toa. A fila de hoje para entrar no Taj Mahal foi a prova cabal disso.

As indianas (não os caras, se bem que eles também são bem chegados numa enconstadinha), incrivelmente, inexplicavelmente, quando têm que fazer fila, ficam uma atrás da outra, beeeeem encostadinhas, coladinhas mesmo, no melhor estilo bumbum-barriga/barriga-bumbum. Nada daquela deliciosa fila ocidental que você fica do lado da suas amiguinhas, batendo o maior papo, se arrastando tranquilamente até o destino, ou programa de índio, final. A espertinha aqui, também porque estava apavorada com a idéia de virar sanduíche hindu, ficou na fila dos meninos, até que os guardinhas, aos berros, me mandaram pra fila das mulheres. Acontece que não dava pra entrar, de tão coladas que as danadas ficam!!! Aí o guarda, mui amigo, me enfiou no meio dumas hindus rastafari, e a bonita entrou, toda tímida, colou bumbum com barriga, barriga com bumbum, e lá ficou. Um milisegundo depois, pasme, a tia que estava com a barriga colada com o meu bumbum, me arrastou, aos berros, para fora da fila! Juro, agarrou meu ombro e bufa pra fora! Hahahaha! Fiquei uns segundos zonza sem entender se o problema era porque eu tinha mudado de fila, se porque eu era uma não hindu cara de pau, ou se porque ela achou que meu bumbum era grande demais e que assim também não dava, seu guarda! Com a maior cara de coitada do mundo, segurando o choro e o riso e a vontade de mandar a véia pra puta que o pariu, em inglê e indi, esperei o guardinha me colocar entre duas chinesas, que, essas sim, queriam me bater de verdade mas eram tão pequeninhas, tadinhas, que só fizeram resmungar tudo o que podiam em chinês.
Daria um tratado de antropologia, porque diabos seres humanos que em outros lugares do mundo preferem manter, confortavelmente e para o bem de todos, 5 cm entre seu bumbum e a barriga do sua vizinha, se grudam dessa maneira, sem ninguém mandar, pedir, sem ser obrigatório e sem ser por falta de espaço? E lá ficam coladinhas, fungando no cangote da amiguinha, numa boa! Vai entender!

O Taj Mahal é mega bonito, principalmente por fora e de longe. A implantação é fantástica, os jardins da frente são impecáveis como conjunto, o desenho é delicado, o mármore branco dá o tom da finura e os desenhos incrustrados em pedra semi-preciosas são de lascar. Por dentro, juro que deu um pouquinho de desapontamento. Porque ele no fim das contas é um mausoléu, ou seja, uma sala pequena e escura, e um caixão bem no meio (no caso, dois, porque depois o Shah Jahan foi enterrado ali do lado da beloved wife). Zilhões de turitas (na maioria indianos mesmo) pra dar a volta numa tumba, que pra falar bem a verdade é falsa, porque o rei e a rainha estão mesmo é lá no subsolo, protegidinhos. Tem gosto pra tudo, se estiver por lá, tem que ir ver, mas por favor, não vá a Índia só por causa do Taj Mahal!

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Agra











Monumentos em Agra





















Mais que pobres

Não existe esgoto, água, iluminação urbana decente, farol de trânsito, faixa de pedestre, coleta de lixo. Lavam roupa no rio, jogam lixo no rio, as crianças tomam banho no rio. As casas são umas tocas, isso quando são casas (às vezes uma tendinha no meio da rua resolve também), as lojas são umas barracas no meio da rua ou - esse deu certo na vida – umas oficininhas escuras e sujas. Na rua tem de tudo: criança descalça, rikshaw (taxi que consiste duma carcaça construída em cima de uma vespa – leva até 3 turistas e até 6 indianos), mula, camelo, cavalo, vaca, moto, bike, carroça. Não dá pra imaginar como se pode viver assim, assim mesmo eles vivem, e não andam por aí com cara de que isso é insuportável. Eles vão andando por aí, se virando sabe lá deus como, não brigam na rua, não gritam, não olham feio. As crianças ficam malucas pra interagir, devo parecer uma nave espacial para elas, que ficam me olhando com aquela carinha ansiosa de curiosidade até o primeiro tchauzinho. Aí desembestam com os “ouquei”, “bai-bai”, ou, muito sofisticado para a idade, “hallow, mam”, entre sorrisos e aceninhos de mão.

O coração fica do tamanho de uma cabeça de alfinete.

Foto: galerinha indiana de alguma escola fazendo excursão, e ao fundo, o Taj Mahal.

Gripe amarela e comer ou não comer, eis a questão

Estou gripada desde o avião São Paulo – Paris, porque é claro que uma pessoa que jamais fica doente deve ter sua única gripe do ano justamente quando está indo para um país onde se vai rezando para não ter nem dor de cotovelo, que dirá dor de garganta e outras pequenas maravilhas.

Em Paris está todo mundo gripado, inclusive o metrô e o ar, se é que isso é possível. Na véspera de pegar o avião para Delhi, dormindo mal e porcamente, sonhei que não podia entrar na Índia por falta de condições sanitárias, pelo menos assim dizia a polícia do aeroporto, que carimbava o meu passaporte e me mandava dar meia volta. Imagina!

Quando você se prepara pra vir pra cá, o povo diz pra não comer em lugar estranho, não beber água se não puder ter certeza que a garrafa está lacrada, não escovar o dente com a água da torneira. Na real, se é para ser neurótico, você acaba nem abrindo a boca com medo de engolir o ar, tamanha é a sujeira e a falta de saneamento básico em todo e qualquer lugar. Mas aí você reza, de preferência pro Ganesha – aquele com cabeça de elefante, bem feliz - enche a mochila de garrafinha de água mineral do hotel, e vai que vai.

Ontem jantamos numa birosquinha chamada Shanti Lodge. Do terraço daria pra ver o Taj Mahal, se estivesse lua cheia. Aí a foto ficou das ruelinhas de Agra mesmo.

A comida é ótima, mas apimentada como o diabo. Dá-lhe duas latinhas de diet coke pra agüentar a bucha. Por enquanto, o famigerado piriri do viajante é só lenda.

Quando yes significa no

Li no Lonely Planet e achei exagero, mas é a mais pura e a engraçada verdade. Quando você precisa perguntar alguma coisa pra um indiano, tem que ser uma pergunta direta, simples e, se possível, daquelas estilo resposta aberta, nada de sim ou não. Por exemplo, ao invés de perguntar: “Aqui é a entrada do Templo?” é melhor perguntar: ”Onde é a entrada do Templo?”. Por quê? Eles odiariam responder não, mesmo que ali não fosse a bendita da entrada, pra eles ia seria desagradar ou ofender você. Sacou? Ou melhor, o que você sacou do que eu disse?

A verdade é que eles tentam te enrolar o tempo todo atrás de uma gorjeta a mais, porque está gravado em ouro e pedras preciosas na nossa testa t-u-r-i-s-t-a, mas quando eles notam que você percebeu a armadilha ou se irritou, pedem desculpa até não poder mais, perguntam se você está chateado, e dizem que ficam felizes se estamos felizes. Umas graças, não? Dá pra ficar bravo?

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Be kind horn


Aqui, os caminhões, carretinhas, rikshaws têm a engraçadíssima mensagem “horn please” - por favor, pelo amor de deus, para o seu próprio bem e de todo o resto da humanidade indiana, buzine. No caso do nosso amigo mais desesperado, "blow horn", em tupiniquim vernacular: filho, sem miséria, senta a mão nessa buzina.


O cara que arrumou o carro pra gente assim que chegamos em Agra definiu maravilhosamente bem o trânsito na Índia. Para dirigir na Índia, você precisa de três coisas essenciais. Boa buzina, bons freios e boa sorte.

Esse mesmo cara disse que o Brasil é um país feliz, porque é grande e tem pouca gente proporcionalmente ao tamanho que tem. Segundo ele, na Índia, é gente demais. Gente demais querendo educação, remédios, roupas, comida - por isso é tão difícil sobreviver.




Agra

Chegamos em Agra, cidade da região de Uttar Pradesh, estado onde nasce o rio Ganges. Na cidade de Sarnath, Buddha fez seu primeiro discurso sobre o caminho do meio, e em Kushinagar, morreu. Mathura é tida como a cidade onde nasceu Krishna.

Porém, o grande motivo pelo qual os turistas vêem a Agra é o Taj Mahal, ícone da arquitetura do período Mughal. Como Jorge Ben já havia ensinado aos tupiniquins, foi construído pelo imperador Shah Jahan quando uma das suas mulheres, Mumtaz Mahal, morreu dando à luz o décimo quarto rebento do casal. Ironias do destino, o Shah Jahan mal viu o Taj Mahal pronto, em 1653, quando um de seus filhos tomou o poder, mandou o pai pro xilindró, e o ex-imperador ficou até o fim dos seus dias vendo o Taj pela janelinha do confinamento.



Agra é mais complicada que Delhi. É bem mais rural, mais calma, menor, menos populosa, as pessoas menos espertinhas. Mas é terrivelmente, dolorosamente, impressionantemente mais miserável.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Show de sons e luzes


Delhi é o caos. Não dá para definir melhor do que isso. Aqui você se pergunta qual é o limite no qual é possível viver.
Quão sujo, desorganizado, precário, pobre, quebrado, velho, sem infra-estrutura, sem segurança, sem saneamento básico, sem regras de trânsito, sem dinheiro, sem ajuda de governo pode ser um lugar que as pessoas ainda consigam viver uma vida inteira e fazer tudo o que tem que fazer.

O trânsito é infernal, e se uma imagem vale mais do que mil palavras, basta dizer que o taxista bateu o carro (bateu mesmo, nada de só uma raladinha) num caminhãozinho, e que assim começou nossa primeira tarde na Índia.

Eles são miseráveis, mesmo, mas de alguma maneira muito bizarra e inexplicável, você não se sente mal. Pra falar bem a verdade, do fundo do coração, dá um pouco de alívio. De desmontar um pouco a pose, de poder parecer esquisita. De não ter que parecer limpinha, lindinha, educada, bem de vida, formada, mestrada, doutorada, pos-doutorada, apartamento comprado, cargo, carro, namorado. Estranhamente, vendo que dá pra viver em condições tão absurdas, é bom lembrar do que você tem, e saber que até dava pra ter menos, que ia ser possível do mesmo jeito. Sem apologia ao hare krishna que sai por ai de pijama e acha que isso resolve o pepino espiritual de cada um, porque não dá vontade de abrir mão de tudo. Só dá mais vontade de não se preocupar tanto com esse tudo.

Na Old Delhi, a grande atração é o Red Fort, que é realmente bonito e realmente vermelho, dentro de onde existem alguns palácios bem bacanas e um bazar meio chinfrin.

Quando entramos estava quase escuro, e depois de alguma luta pra entender o que o guardinha estava falando, entendemos que iríamos assistir um show de sons e luzes, mas em indi, uma vez que a apresentação em inglês só começava às 19h30. Tudo bem, vamos ver em indi mesmo.

A apresentação era um teatro falado (aliás, gravado), contando a história de Delhi, fatos e personagens. A platéia ficava num espaço enorme, naturalmente criado pela implantação dos palácios. As caixas de som estavam espalhadas, e cada personagem falava de um lugar diferente, assim, com todos os clichês possíveis: a voz retumbante do narrador, cavalos relinchando pra representar a cavalaria de guerra, risadinhas de mulheres significando as fofocas de alcova que fazem parte de todo reinado. Acho que isso era o que eles queriam dizer com show de sons.

Mais o mais bacana era a parte luzes do show. Conforme a história ia rolando, eles iam acendendo uns spots nos palácios, na mesquita, na casa de banho. Por dentro, por fora, de cima pra baixo, de baixo pra cima, branco, vermelho, azul, forte, fraca. Fique passada com a solução incrível que eles encontraram de fazer um teatro barato, prático, repetitivo, padronizado (praticamente cinema!), construindo, com a única coisa que eles têm na mão (a beleza dos palácios, a sua volumetria incrível, variada, exótica, cenográfica) uma narrativa que deve entreter centenas de turistas estrangeiros e indianos há anos. Simples, esperto e genial!

AF148

Confusão pouca é bobagem , e tudo pode piorar dentro de um avião com 400 pessoas e um vôo overbooked. Sem assento marcado, sentamos separados.

Do meu lado esquerdo, uma indiana simpática que estava estudando na Europa (ou pelo menos foi o que eu consegui entender do impossível inglês que eles falam). Do outro, um mini indianinho aflito.

Minutos mais tarde, a comissária de bordo vem explicar, por mais bizarro que isso possa parecer, que o cartão de embarque dele foi trocado com o de outra pessoa na hora de embarcar, muita gente, desculpe a confusão, e que ele precisaria trocar de lugar com o amigo que havia ficado com o cartão dele.

Atrás dela, aparece a figura que todos imaginamos ver na Índia, turbante amarradinho daquele jeito incrível, barba grisalha até o meio do peito, meio sorrindo, meio formal, meio engraçado, meio guru. Pacotinho na mão, deu uma arrumada na bagunça que tava o compartimento das bagagens (eu e minha amiga indiana jogamos tudo de qualquer jeito lá), colocou o pacotinho canto e sentou do meu lado.

Do meu lado seria um eufemismo, porque ele sentou praticamente no meu colo, já falou oi pra indiana, perguntou onde ela morava e de onde estava vindo. Num inglês que, depois de conhecer outros indianos descobri que era fantástico, perguntou de onde eu estava vindo (Paris), onde eu morava (Brasil), se meu país era muito longe (11h de avião até a França), se era muito pobre (em alguns lugares, sim, mas também tem muita riqueza), se era muito grande (não tão grande quanto a Índia, mas tem 200 milhões de habitantes), se era muito quente (no norte, o tempo todo, mas em outros lugares, verão quente e inverno frio), se tinha montanhas, planícies (tem um pouco de tudo, muito litoral, floresta – inclusive a amazônica – montanhas, planaltos), se eu morava no sul ou no norte (no meio, mais para o sul), se eu tinha alguma descendência indiana, pois me parecia muito com indianos (não, não tenho não), mas se parece (é, acho que sim), se todos os brasileiros tinham traços assim indianos (olha, vendo por esse ângulo, acho que sim, um pouco) se eu ainda estava estudando (não, já sou formada), em quê (arquiteta), se eu trabalhava por conta ou numa empresa (numa empresa, grande), construtora (é sim, construtora), se eu estava indo encontrar amigos na Índia (não, estou indo com meu namorado, que está em algum lugar nesse avião, só para conhecer), se o meu namorado era arquiteto também (sim, arquiteto – nessas horas é mais prático dar uma mentidinha). Enquanto eu tomava fôlego, e depois dizer que eu ia ver muitas obras interessantes de arquitetura na Índia, perguntou se eu não queria que ele trocasse de lugar com meu namorado, pra que a gente viajasse junto. Pegou o pacotinho, atravessou o avião, trocou de lugar, sorriu para o novo vizinho, um americanão mal-encarado que possivelmente não daria a menor trela pro nosso amigo hindu. Oito horas depois, pousamos em Delhi.

Paris-Delhi

Os nossos queridos, educados, finos e humanistas amigos franceses começam a ficar péssimos quando se trata de vôos para África e Ásia. O Charles de Gaulle tem uma área separada para esses vôos, e a confusão é no mundo. No check-in, a primeira surpresinha. Tínhamos comprado um bilhete com limite de bagagem para 20 kg (confesso que era infinitamente mais barato, então não tem desculpa). Duas malas médias e uma pequena, que poderia lindamente ir como bagagem de mão. Despacha a malinha, a primeira mala. Na minha mala, obviamente, excesso de bagagem. Vocês vão ter que pagar pelo excesso de 14kgs. Claro, sem problema, quanto fica? 600 euros. Não! Moço, vai buscar aquela mala pequena que a gente leva na mão. Não dá, a mala já foi. Então espera aí um pouquinho que a gente vai tirar coisas da mala. Não dá pra esperar, a fila está enorme, todo mundo que tem problema com a bagagem precisa sair da fila e entrar na fila novamente. Mas é só um minutinho. Se eu deixar, eles vão dizer que eu sou racista. “Eles” são praticamente todos os africanos residentes em Paris, na fila do embarque, indo passar o Natal com a família no Congo.

Fora da fila, alguns minutos depois, quase toda a minha mala foi colocada em malinhas, bolsinhas, mochilas, sacolas. Finalmente despachada com 6kg e nem um centavo de euro a mais.
E saímos lindos de Paris, destino Delhi, com bolsas a tiracolo entupidas de calcinhas, meias, camisetas e duas elegantíssimas sacolinhas do Pão-de-Açúcar, a um segundo de estourar e mostrar pro mundo o que é que a brasileira tem.

Deve ser o primeiro indício de que devemos nos desapegar dos bens materiais.

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